Peça de teatro-documentário
O espetáculo fez seis sessões no espaço Rua das Gaivotas, 6, de 29/04 a 03/05/25. Em 12/09/2025 o espetáculo abriu o Festival Todos, no Auditório Camões, em Lisboa.
© Alípio Padilha
Em maio de 2003, quatro mulheres escrevem uma carta pedindo a expulsão das trabalhadoras do sexo brasileiras de Bragança, Trás-dos-Montes. Teria sido mais um dos movimentos similares na região, se não tivesse estampado a capa da revista TIME. Poucos meses depois, cerca de 200 brasileiras são banidas da cidade. Criado por Maria Giulia Pinheiro, o espetáculo de teatro-documentário cruza os acontecimentos do fenômeno “Mães de Bragança” com as histórias reais das atrizes em cena, Tati Pasquali e Camila Cerqueira, além de uma terceira personagem em vídeo, protagonista do acontecimento. Vidas que convidam à reflexão sobre estereótipos, machismo, racismo, xenofobia e patriarcado. Quem ganha com as disputas entre mulheres? Em tempos de ascensão da extrema-direita em todo o mundo, voltamos às raízes dos sistemas de opressão para questionar as dicotomias entre mães e prostitutas, entre forasteiras e patriotas, entre o eu e a outra.
“O título deste espectáculo é intrigante: ao mesmo tempo uma ameaça, uma provocação e uma promessa de história cabeluda ou novela dos tempos modernos. Ele é isso tudo. Com uma generosa dose de humor temperada com inteligência aguda, a dramaturga, poetiza e encenadora brasileira Maria Giulia Pinheiro leva à cena preconceitos e estereótipos da brasilidade feminina na sua relação com o conservadorismo da cultura portuguesa, em colaboração com as performers Tati Pasquali e Camila Cerqueira.
Partindo do caso das “mães de Bragança” (episódio mediático xenófobo em 2003 que levou ao encerramento de casas de alterne com trabalhadoras do sexo brasileiras), o espetáculo questiona as construções estereotipadas da mulher brasileira que a reduzem a um corpo sexualizado e, frequentemente, racializado. Estes estereótipos têm origens históricas no período colonial e ressurgem na cultura popular, por exemplo nas telenovelas brasileiras como divertidamente mostra este espetáculo, bem como no nosso quotidiano de hoje como atestam as histórias pessoais que as performers relatam de forma trágico-cómica.
A verdade é que o povo brasileiro tem uma relação com o corpo totalmente diferente dos portugueses, a começar pela forma como se cumprimentam: um beijo que puxa um abraço. Há uma liberdade e sensualidade que lhe são próprias, mas nem por isso indecentes ou ameaçadoras. A indecência e a ameaça são construções, normalmente racistas, criadas para isolar o outro, o migrante, o estrangeiro; para distingui-los do “nós”, que ocupa sempre o lugar do Bem; para privá-lo da possibilidade de pertença a um lugar, ainda que num país que tem a maior comunidade brasileira fora do Brasil (depois dos EUA). O que fazem estas artistas brasileiras é criar um lugar de fala a partir da sua condição feminina e migrante, num contexto crescente de violência e xenofobia da extrema direita que importa combater. Elas não vieram para roubar o seu marido, mas “se prepare” porque vão roubar o seu coração.”
Ana Pais Ana Pais é investigadora auxiliar (CEEC) no ICNOVA, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa, dramaturga e curadora. É autora de Discurso da Cumplicidade. Dramaturgias Contemporâneas (Colibri, 2004) e Ritmos Afetivos nas Artes Performativas (Colibri, 2018), bem como editora de Performance na Esfera Pública (Orfeu Negro, 2017) e da sua versão online em inglês disponível em www.performativa.pt.
© Alípio Padilha
Queria reforçar as minhas felicitações pela excelente peça "Viemos Roubar os Vossos Maridos". Muito bem imaginada e representada. Nela há a coexistência do gracejo e da denúncia; da voluptuosidade e do sofrimento; do humor e do drama; da subjugação e da revolta. Creio que o público foi navegado por todas estas ondulantes emoções e muitas mais. A peça provoca sentimentos, mas também uma consciencialização das contradições do mundo em que vivemos, desde logo ao mostrar que as disputas entre as “mães” e as suas “inimigas” encobrem conflitos de raiz social.”
José Machado Pais Investigador Coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Professor Catedrático Convidado do ISCTE/Instituto Universitário de Lisboa e autor do livro “Enredos Sexuais, Tradição e Mudança - As Mães, Os Zecas e as Sedutoras de Além-Mar”.
© Alípio Padilha
O processo de tornar-se o Outro é, por si só, dramático. A história das Mães de Bragança me interessou assim que me tornei Outra, ao migrar para Lisboa em 2019. O privilégio branco de poder escolher tornar-se o Outro traz também a responsabilidade de implicar-se nos mecanismos e dinâmicas que, parafraseando Audre Lorde, lucram com opressões de outras partes de nossas identidades. Ainda mais quando somos As OutrAs.
A oposição dos arquétipos femininos Prostituta x Mãe expõe a tríade da dominação: gênero, raça e capital. A exploração de gênero via contrato sexual — seja por trabalho ou matrimônio — guarda em si as limitações da liberdade feminina, ainda mais evidentes quando essas figuras se opõem e são mediadas e replicadas por construções de discursos midiáticos. Neste caso real, o desprezo pela Outra, a xenofobia e os imaginários coloniais, somados à violência escravagista e estatal, constroem nós profundos, antigos, vivos e dinâmicos. Dramaturgia pura.
É um vespeiro. Sempre soubemos. E, ao mesmo tempo, uma potência: entender o que há de Eu na Outra, da Outra em Eu, o que é Outra-Outra e o que é Eu-Eu.
O teatro-documentário, atento aos factos e suas consequências, me pareceu o formato que esse material pedia: o confronto dos estereótipos com a complexidade humana que eles tentam apagar. Sem dar respostas, as histórias dessas migrantes brasileiras são pontos de encontro para perguntas.
Maria Giulia Pinheiro
Encenadora e Dramaturga
© Pat Cividanes
Criação, encenação, dramaturgia e textos: Maria Giulia Pinheiro / Textos e Interpretação: Tati Pasquali, Camila Cerqueira e Eliene Lima / Realização em Vídeo e Direção de Projeção: Anna Zêpa / Design de iluminação e Direção de Cena: Lucas França / Direção de movimento: Deborah Kramer / Trilha Sonora: Ágatha Cigarra / Apoio técnico: Hugo Vasconcelos / Olhar Exterior: Jorge Louraço e Patrícia Portela / Artes Gráficas: Pat Cividanes / Produção: Maria Giulia Pinheiro e Tati Pasquali / Assistência de produção: Marta Simas / Gestão Financeira: FALA / Residências para criação: Biblioteca de Alcântara – José Dias Coelho, Rua das Gaivotas 6